REENCANTANDO A EDUCAÇÃO A
PARTIR DE NOVOS
PARADIGMAS DA CIÊNCIA1
Maria Candida Moraes
PUC/SP/Brasil
Out/2004
O que significa reencantar a
educação? Seria uma nova forma de educar
e de aprender? Encantar, segundo o Novo Dicionário Aurélio (1999:745) significa
cativar, seduzir, maravilhar, arrebatar, lançar encantamento e magia sobre
algo, causar prazer, transformar em um outro ser. Reencantar seria, então,
voltar a seduzir, a cativar novamente, a transformar mais uma vez. Encanto
traduz a idéia de sedução, beleza e magia. É algo que nos fascina e nos deixa
maravilhados. E a educação? O que é que ela tem a ver com tudo isto?
Na realidade, temos observado que a educação, hoje, vem se
apresentando de maneira oposta, privilegiando a cultura da reprovação, a perda
da auto-estima, a apatia e o desinteresse. E nos perguntamos, diante da
conjuntura atual, será mesmo possível reencantar a educação? Como transformar o ambiente de aprendizagem num
lugar de encanto, beleza e magia, um lugar onde prevaleça a criatividade e o
cultivo da alegria e de novos valores? Será possível transformar o professor em um educador da felicidade, como pretende
Rubem Alves? Será possível transformar a aprendizagem em uma experiência ótima,
como pretende o famoso psicólogo Mihaly Csikszentmihalyi? Como conectar
educação com sedução, liberdade, beleza e magia? Mas, com qual paradigma? Com quais referenciais teóricos vamos
continuar trabalhando em nossas práticas
pedagógicas? Por quanto tempo ainda vamos continuar privilegiando
propostas pedagógicas fundamentadas em um modelo de ciência de 300 anos atrás?
A realidade, como hoje se apresenta, não deixa de ser
um desafio ao mundo desvalorizado e mal pago da educação. Ao mesmo tempo,
impulsionada pela entrada das novas tecnologias digitais, este momento se
revela como uma grande oportunidade para
catalisar mudanças educacionais importantes e transformar a maneira como
concebemos a escola, a educação e a própria dinâmica vida. É um desafio quando
nos deparamos com os novos cenários mundiais caracterizados, simultaneamente,
pelos grandes avanços científicos e tecnológicos, pela globalização, pelas
grandes conquistas da humanidade associadas, lamentavelmente, ao mais incrível
processo de desumanização de nossa história, que se torna ainda mais visível em
função do lado perverso da globalização, do terrorismo, das guerras fraticidas
que vêm apavorando em escala mundial. E
esta mesma globalização que vem rompendo
espaços, fronteiras, barreiras e que, ao mesmo tempo, vem
desestruturando sistemas de vidae
desvelando mais uma nova forma de exclusão, a exclusão digital, como a modalidade
mais nova de marginalização
sócio-econômica e cultural da atualidade.
1 O termo
reencantar a educação foi usado por Hugo Assmann em seus livros Metáforas para reencantar a educação:
epistemologia e didática (1996), publicado pela Editora UNIMEP/Piracicaba e
Reencantar a educação: rumo à sociedade
aprendente (1998), publicado pela Editora Vozes.
Mas antes de
Assmann, li a palavra reencantamento em Prigogine, em seu memorável livro
escrito com Isabelle Stengers, A nova aliança
(Editora UNB,1991), no qual ele fala de nosso mundo desencantado a partir
da visão dos físicos mais “ortodoxos” que vêem a natureza como um mundo
mecânico e materializável regido por uma força universal, um mundo real
separado da vida. Prigogine fala sobre o reencantamento do mundo, que já não é
mais o mundo silencioso e monótono, o mundo do relógio da física clássica, mas
o mundo da “escuta poética”, do diálogo, da abertura e do respeito à natureza.
É um grande desafio quando percebemos que temos que
repensar o culto descabido ao “poder
milagroso” das antenas parabólicas na educação, utilizada em sua
vertente mais instrutiva e menos criativa, e
a necessidade que temos de encontrar novas formas de superar o modelo
pedagógico tradicional que ainda prevalece na grande maioria de nossas
escolas.
O desafio é ainda maior quando percebemos que as novas
bases epistemológicas trazidas pela fisica quântica e pela nova biologia nos
confirmam que a aprendizagem já não pode ser explicada como fenômeno de mudança
de conduta que ocorre a partir de
informações instrutivas captadas do meio ambiente, pois o que se passa com o indivíduo depende de sua
estrutura, depende da dinâmica interativa entre indivíduo e meio, das
circunstâncias em que o aprendiz encontra-se inserido e que modifica o fluir de
suas emoções e de seus pensamentos. Não
é um agente externo qualquer que desencadeia mudanças estruturais em nossa
corporeidade. Toda mudança estrutural
depende da organização interna do indivíduo, de como funciona as suas
estruturas internas.
Certamente, é um grande desafio quando observamos que
a educação ainda continua gerando padrões de comportamentos tendo como
referência um sistema educacional que não leva o indivíduo a aprender a pensar
para solucionar problemas, a questionar quando necessita compreender melhor,
preferindo aceitar passivamente a autoridade e a ter “plena certeza” das
coisas. É um enorme desafio quando observamos, com tristeza, as escolas
“protegidas” com grades, os laboratórios de informática trancados, as crianças
entrincheiradas nos espaços reduzidos de suas carteiras escolares, imobilizadas
em seus movimentos, silenciadas em suas falas,
impedidas de pensar e de expressar suas emoções e sentimentos. É uma
grande inquietude em relação a magnitude
do trabalho que necessita se feito e reforçada quando escutamos professores
ensinando aos seus alunos que “homem não chora”, que menina “brinca de boneca”, que a frase
precisa ser copiada 20 vezes para nnão ser esquecida..., e que, para se ter boa nota, é necessário
repetir exatamente igual ao que a professora disse em sala de aula. Na realidade, em nossas salas de aula, os
alunos encontram-se impossibilitados de expressarem o que pensam, castrados em
sua falas, limitados em sua imaginação e afeto, presos à uma mente
técnica e a um coraçõa vazio e sem esperanças, obrigado a estancar suas
lágrimas e impedidos de alçar novos vôos e conquistar novos espaços.
Na verdade,
muitos professores ainda continuam vendo o erro como expressão da
ignorância, o conhecimento cada vez mais
dividido, fragmentado e o aluno como um “banco de dados”. É um modelo de escola
que continua oferecendo espaços
quadriculados e testes de múltiplas escolhas em vez de processos interativos,
construtivos e colaborativos de
construção do conhecimento. Um modelo que exige memorização, repetição e cópia,
que enfatiza conteúdos, resultados e produtos, esquecendo-se da riqueza e da beleza do processo e da importância do
diálogo interdisciplinar e transdisciplinar.
De certa forma, continuamos recompensando a
conformação, o silêncio, a boa conduta e a falta de imaginação, punindo “erros”
e “ensinando” o que e o como se deve pensar, rompendo com as suas tentativas de
liberdade de expressão. Educação e
liberdade ainda continuam sendo palavras
conflitantes e excludentes, em vez de convergentes e solidárias.
Onde está a origem de tudo isto?
Por quê a nossa escola ainda continua dividindo conhecimentos em assuntos,
especialidades e sub-especialidades, transformando o todo em partes, separando
cabeça, tronco e membros, o fato da fantasia e
a história da geografia? Na
realidade, nos esquecemos que todo fato
histórico ocorre num espaço geográfico,
que os aprendizes estão inseridos em contextos significativos e que sentimento,
emoção e razão envolvem processos interdependentes e inseparáveis em nossa
corporeidade. Esquecemos também que a totalidade é o real, que a realidade
é um todo e que é o ser humano que se
separa da natureza, que fraciona a sua realidade. É ele que, em sua tentativa de compreender a realidade,
de dominar o mundo do objeto, de fragmentar disciplinas, de categorizar o
pensamento humano, fraciona a si mesmo e a sua realidade, se separa de seu
ambiente, se distancia de seu semelhante, esquecendo a sua própria condição humana e não se dando
conta de que os processos evolutivos são processos em co-evolução.
É este tipo de pensamento que vem
gerando grande parte dos problemas que hoje
afligem não apenas a educação, mas também a humanidade. É esta visão
equivocada que nos faz esquecer que a realidade é um grande rio que flui onde
todos os objetos, eventos, processos, entidades, estruturas e tudo o mais que
existe, são formas abstraídas desse grande fluxo, onde as “coisas” se dobram e
se desdobram, se apresentam, se revelam e se recolhem na tentativa de
corresponder à finalidade de sua
existência.
Precisamos tomar consciência que
muitas de nossas práticas pedagógicas ainda
encontram-se fundamentadas no velho paradigma da ciência, numa
ciência sem vida, sem cor, sem cheiro e
sem sabor, pois sujeito e objeto estão separados. Por outro lado, sabemos que a
ciência do passado produz uma escola morta, dissociada do mundo e da vida. Uma
educação sem vida, produz seres incompetentes, incapazes de pensar, de
refletir, de construir e reconstruir conhecimentos e realizar descobertas
científicas. É uma escola voltada para uma educação do passado que separa
aprendizagem e vida, que produz indivíduos incapazes de se autoconhecerem, de
se compreenderem como fonte criadora e gestora de sua própria vida, como
construtores do conhecimento e autores de sua própria história.
Como fazer? Por onde começar? Qual o modelo da ciência, hoje, capaz de
nos ajudar a reencantar a educação e resgatar a alegria e o prazer em aprender?
Que referencial teórico será capaz de conciliar o que está acontecendo no mundo
da ciência, com os avanços científicos e tecnológicos, e com a necessidade
premente de construção e reconstrução do homem e do mundo? É o que
pretendemos discutir nesta conferência.
Na realidade, urge um paradigma educacional que vá
além da pedagogia tradicional, da pedagogia tecnicista, derivada do
behaviorismo e do positivismo tão seriamente criticados por renomados
educadores da atualidade. A conjuntura
atual exige que possamos ir além desse tipo de proposta, que fujamos do modelo
cartesiano-newtoniano na educação, um modelo fragmentado, desconectado da
realidade e do contexto cultural, que continua seguindo um enfoque gerencial de
produção do conhecimento para consumo
por parte de uma população amorfa, apática, absolutamente indiferenciada. Uma
proposta arcaica, desatualizada no que
se refere aos parâmetros da ciência atual, que define comportamentos de entrada
e de saída como verdadeiras linhas de montagem, seqüencial e hierárquica,
previamente estruturada pelos professores ou pelo planejador, alienados do
contexto sócio-cultural dos indivíduos. Precisamos fugir do paradigma
tradicional que tem compromisso com o passado, com as coisas que não podem ser esquecidas, que
dá maior ênfase ao conformismo, que não
percebe o lado construtivo do erro, que elimina as tentativas de liberdade e de
expressão.
Necessitamos, mais do que nunca, de um novo modelo
educacional que, além de colaborar para a formação do ser, também reconheça a
aprendizagem como um processo complexo em permanente construção, que depende
das ações e das reações daquele que conhece, que depende do que acontece em sua
corporeidade, das mudanças estruturais que ocorrem na organização autopoiética,
das influências mútuas entre o indivíduo e o meio onde está inserido. Um
paradigma que colabore para a formação integral do ser aprendiz, que seja capaz
de aproximar a educação da vida e trazer um pouco mais de vida para dentro de
nossas salas de aula.
Na realidade, necessitamos de novas pautas
educacionais que capacitem o aprendiz a viver numa sociedade pluralista em
permanente processo de mudança. Buscamos
uma educação que nos ensine a aprender a viver/conviver com a desordem e o
caos, que nos faça compreender a importância da sabedoria implícita na
“espera-vigiada e na escuta-poética”, que valorize caminhos alternativos e
interesses diversificados, que reconheça o papel construtivo do “erro”, a existência de outros possíveis e
que desenvolva a capacidade de criar, de imaginar e de construir o que não
existe. Precisamos de um paradigma que respeite a natureza, que não destrua os
sonhos, a utopia, a fé e a esperança, reconhecendo-os como mola propulsora,
construtora e modificadora do presente. Um paradigma capaz de iluminar novos
caminhos e que nos ajude a descobrir os
novos talentos tanto para a construção da ciência quanto para o cultivo
da paz.
Buscamos um paradigma que reconheça
a inexistência de divisão categórica entre o mundo físico e o mundo vivo, entre
mente e consciência, razão e emoção, lembrando que vida e mente são elementos
constituintes de um processo de grande complexidade e que a vida traz consigo
uma rede infinita de nós, de relações, miríades de diversos elementos que
interagem uns com os outros (Laszlo,1997). Buscamos um paradigma voltado para o
desenvolvimento humano que facilite a ocorrência de processos reflexivos, que
conceba o conhecimento como um processo de vir-a-ser, diferente do modelo da
racionalidade técnica que está mais atento ao resultado a ser obtido do que à
forma de estruturar o problema e ao processo de raciocínio desenvolvido.
Estamos realmente preocupados em
colaborar para que o aprendiz tenha condições de enfrentar o seu destino, que
desenvolva competências e habilidades para sobreviver num mundo de incertezas,
imprevistos, inseguranças, que impõem a necessidade de desenvolver novos
estilos de comportamento, de cultivar novos valores, de desenvolver novas capacidades de criar,
criticar, questionar e aprender que sejam mais significativas, bem como
aprender novas maneiras de viver/ conviver em sociedade.
Na realidade, necessitamos de novas
pautas pedagógicas que nos ajudem a reconhecer que é tempo de uma nova
educação, de um novo diálogo, de novas parcerias e de novas alianças. É tempo
de novos desafios e de novos valores, do nascimento de novas culturas, do
surgimento de uma nova consciência, tempo de abertura aos novos saberes e aos
novos tempos que se anunciam neste início de milênio.
É tempo de reencantar a educação!
Bibliografia
Assmann, H.
(1996). Metáforas novas para reencantar a
educação: epistemologia e didática. Piracicaba: UNIMEP.
Asmmann, H (1998).
Reencantar a educação rumo à sociedade
aprendente. Petrópolis/RJ: Editora Vozes.
Csikszentmihalyi, M.(1999). Fluir: Una psicologia de la felicidad.
Barcelona:Editorial Kairós.
Csikszentmihalyi, M. (1999). A descoberta do fluxo: A psicologia do
envolvimento com a vida cotidiana. Rio
de Janeiro: Rocco.
Laszlo, E. (1997).
El cosmo creativo: hacia una ciencia
unificada de la matéria, la vida y la mente. Barcelona: Kairós
Moraes, M.C. (1997). O paradigma educacional emergente. São
Paulo: Papirus.
Moraes, M.C. e Torre, S. de la.
(2002). “Sentipensar bajo la mirada autopoiética o como reencantar
creativamente la educación”.Creatividad y
sociedad. v.2, pp. 4556, Revista de la Asociación para la Creatividad. Madrid.
Moraes, M.C. (2003). Educar na biologia do amor e da
solidariedade. Petrópolis/RJ.: Editora Vozes.
Moraes,M.C. (2004). O pensamento
eco-sistêmico: educação, aprendizagem e cidadania no século XXI.
Petrópolis/RJ: Editora Vozes.
Prigogine, I. & Stengers, I. (1991). A nova aliança: a metamoforse da ciência. Brasilia: Editora da Universidade de
Brasília.
Mini
currículo
Maria
Candida Moraes é doutora em Educação pela PUC/SP, mestre em Ciências
pelo INPE/CNPq, professora de Pós-Graduação em Educação na PUC/SP. Consultora e
conferencista nacional e internacional, foi consultora do Banco Mundial,
pesquisadora-visitante da OEA, em Washington, professora visitante da
Universidade de Barcelona, membro do Comitê-Assessor de Informática na Educação
do Ministério de Educação do Brasil, onde exerceu, por vários anos, a
coordenação de programas e projetos governamentais relacionados ao uso da
informática na educação brasileira. É autora de livros e publicações na área
educacional, em destaque os livros O
Paradigma Educacional Emergente, em sua 10ª edição, Educação a Distância: fundamentos e práticas, Educar na biologia do
amor e da solidariedade, Pensamento Eco-sistêmico:educação, aprendizagem e
cidadania no século XXI e Sentipensar: Fundamentos e estratégias para
reencantar a educação (Editora Vozes: no prelo).
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